Três dos sete aparelhos que fazem as sessões pelo SUS estão parados, e 311 pessoas aguardam na fila
O corpo todo doía só de encostar a mão, por conta do câncer que avançava. Mesmo assim, Dulce*, 81, saiu de casa duas vezes rumo ao hospital para fazer a sessão de radioterapia, mas não conseguiu.
Na primeira tentativa, estava cheia de esperança de aliviar a dor e deu de cara com a notícia de que o aparelho estava quebrado. Na segunda, já mais fraca, esperou duas horas e meia para ouvir do médico que precisaria remarcar de novo. Quando seguia para a terceira tentativa em um mês, Dulce antecipou: “Se tiver qualquer outra desculpa, eu não quero mais, estou sofrendo”, disse aos familiares. E dali partiu para suas últimas horas, em uma maca de hospital, bem diferente de como esperava morrer: em casa, confortável, com a família.
A espera de Dulce não foi única. Assim como aconteceu com ela, outros 311 pacientes aguardavam, até novembro, por tratamento de radioterapia disponibilizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em Belo Horizonte, de acordo com a Secretaria Municipal de Saúde (SMSA-BH). Uma expectativa que tem durado até cinco meses pelo início das sessões. Isso porque três dos sete aparelhos que fazem o procedimento na capital estão estragados, deixando ainda mais angustiante a vida de quem está com uma doença dramática como o câncer.
“O médico disse que não havia mais o que fazer a não ser cancelar o tratamento porque ela já iria morrer”, contou a aposentada Maria*, 64, amiga de Dulce havia 40 anos, que a tinha como uma mãe e esteve a seu lado nessa peregrinação final. Quatro dias após a morte dela, Maria não se conformava: “Todos nós vamos ter nosso momento, mas é uma questão de dignidade morrer com assistência. Minha amiga trabalhou a vida inteira, pagando impostos, nunca adoeceu e na hora que precisou…”, lamentou.
Não é possível dizer por quanto tempo Dulce teria sobrevivido se tivesse conseguido a radioterapia desde a primeira vez. Mas, se soubesse que não faria as sessões, seus últimos dias não teriam sido dolorosos de hospital em hospital. “Não é só alertar para descobrir a doença logo, fazer Outubro Rosa e Novembro Azul. Tem que oferecer um tratamento rápido. Muitos não conseguem esperar”, desabafou Maria.
Alternativa. A secretaria informou em nota que, “diante da crise que se instalou no município após avarias ocorridas em três aparelhos, tem empenhado todos os esforços para garantir a prestação do procedimento”. Empenho insuficiente para Marcos*, 48, com câncer na garganta, esperando há quatro meses, e para Sergio*, 91, com tumor no esôfago, na fila há cinco meses. “Meu irmão emagreceu 12 kg, a médica já bateu dois papéis (de encaminhamento), mas não tem expectativa, e a doença avança rápido”, frustrou-se o irmão de Marcos, Marcelo*, 51.
Profissionais da oncologia ouvidos pela reportagem afirmam que a situação da radioterapia na capital se agravou neste ano e que os atrasos no tratamento impactam diretamente na sobrevida dos pacientes. Há ainda os casos de urgência, que necessitam da rádio anti-hemorrágica imediata para fazer o tumor parar de sangrar. “Não se vê o custo indireto disso, de pessoas que vão falecer, ou que a doença vai voltar, e o paciente vai precisar do governo de novo para internação por complicações”, ressalta uma enfermeira.
A SMSA diz que negociou a ampliação da oferta em outros hospitais que fazem o procedimento na capital e em Betim, na região metropolitana, além de municípios maiores do interior do Estado.
* A pedido dos envolvidos, os nomes foram preservados.